quinta-feira, 5 de julho de 2007
Pai Natal no Hospital de Santa Maria
No dia de 23 de Dezembro, transformei-me em pai natal por uma manhã e fui distribuir presentes ao hospital que alberga a minha faculdade e constitui para mim um universo imenso e desconhecido. Mas poder-se-ia perguntar o que me levou a acordar cedo num manhã gelada, vestir a minha bata e percorrer corredores e quartos com um sorriso e presentes embrulhados para distribuir. Não me vou dar a devaneios sobre a necessidade de humanização do ambiente hospitalar, as minhas razões eram bem mais pragmáticas: fi-lo para ter uma ideia mais clara do que virá a ser a minha vida daqui a não muitos anos. Não posso dizer que me arrependa. As situações que se me depararam variaram imenso desde pessoas adormecidas e como tal totalmente ausentes da realidade, pessoas que não falam ou não são capazes de manter um discurso lógico e coerente, até pessoas perfeitamente lúcidas e conscientes, que falaram comigo e com as minhas colegas e que me conseguiram surpreender com muito do que disseram. Levávamos os presentes que podíamos, nem sempre muito adequados às circunstâncias, apesar disso muito sorriam e afirmavam gostar do que lhes dávamos, enquanto outros diziam ter de nos dar algo em troca, apesar da nossa negação veemente. Alguns marcaram-me particularmente: um senhor por volta dos 60 anos no serviço de neurocirurgia que apesar da enorme costura na cabeça, me sorria ao disco que entreguei me disse gostar bastante, cujas maneiras educadas e límpidos olhos azuis me ficaram na memória. Um senhora que me agradeceu a carteira que lhe dei, dizendo que melhoraria de essa fosse a vontade de Deus, e quando assenti me perguntou se era religiosa. Respondi que não e ela afirmou-me que não importava, que se tratava do mesmo. Disse que todos os deuses eram um mesmo com nomes diferentes, ao que ela concordou, acrescentando que ela pediria ao seu e eu pediria ao meu, que certamente eram um só. Não pude deixar de pensar como estava certa. Todos damos significados diferentes a uma mesma realidade que é simultaneamente a nossa e a de todos nós. Claro que nem tudo foram acontecimentos felizes. Conhecemos uma senhora que todos os anos passava o Natal sozinha e iria para casa no dia seguinte e não tinha lá ninguém que lhe abrisse a porta. A solidão é talvez o que mais atormenta muita gente, mais corrosiva que muitas doenças, destrói as pessoas por dentro, ao retirar-lhes a razão de viver. Para mim esta manhã mostrou-me um mundo cuja existência eu não conhecia. Mostrou-me que podia fazer alguém sorrir. Ensinou-me a ter noção do mundo real, com tudo o que isso pode significar.
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