Eu nunca fui boa aluna a Português. A poesia que inundava os programas de Português B tornava-se facilmente para mim algo que roçava o transcendental, uma espécie de linguagem cifrada sem código fácil. Claro que seria tremendamente injusto dizer que entras todas essas obras eu não gostei de nenhuma: nada disso eu gostei bastante de várias, simplesmente estava longe ser para mim fácil interpretá-las. Contudo não foi apenas nas aula de português da minha escola secundária que eu conheci a poesia que provavelmente mais gostei até hoje. Esse poema estava no meu livro de moral do 8º ano e eu nunca mais o esqueci: Intitulava-se A Pedra Filosofal.
“Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso,
em serenos sobressaltos
como estes pinheiros altos
que em verde e ouro se agitam
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.
Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho alacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.
Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,base, fuste, capitel.
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa dos ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança.,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,para-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra som, televisão
desembarque em foguetão
na superfície lunar.
Eles não sabem,
nem sonham,que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avançacomo bola colorida
entre a mãos de uma criança.”
(António Gedeão)
Ainda hoje não sei bem explicar o motivo do fascínio que este poema sempre exerceu sobre mim. Talvez seja por nos mostrar o poder dos sonhos num mundo que em grande parte se esqueceu de sonhar. Vivemos num mundo de consumo desenfreado, mas de grande exigência. Vivemos a correr, num mundo que não se pode dar ao luxo de parar. Nem sequer para pensar, e muito menos para sonhar, ambicionar ou desejar verdadeiramente alguma coisa. Num turbilhão de ruídos e tarefas foi-se a paz e a calma necessárias a aspirar algo mais que viver um dia a atrás do outro, que quase sempre significam tão pouco e que nos deixam cansados e sem forças, hipnotizados pelo mundo que nos chega através de um ecran para o qual tantas vezes olhamos sem ver. Mas a vida não é apenas essa sobrevivência difícil, essa luta continua em que acabamos por desperdiçar muita da nossa vida, porque assim nos é exigido. Quando podemos finalmente parar existe um outro mundo a nossa espera, apenas nosso. Olhar para dentro e perguntarmo-nos o que realmente importa o que realmente queremos deste mundo o que podemos fazer por nós e por ele. Podemos construir a nossa vida, ganhar outra consciência do que se passa a nossa volta. Em suma: sonhar possibilita-nos ser verdadeiramente humanos. Talvez essa seja a chave para o dia de amanhã seja menos cinzento.
quinta-feira, 5 de julho de 2007
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2 comentários:
Dizes que nunca foste boa aluna a Português... Tive colegas com óptimas notas, apenas porque decoravam o que os professores ditavam nas aulas como a interpretação \"correcta\" de algumas obras, e tive colegas com notas baixas que, ao escreverem e partilharem as suas opiniões connosco verbalmente, davam-nos a possibilidade de beber um certo tipo de poesia nas suas palavras... Eram os alunos que tinham coragem de contradizer a opinião dos professores, de questionar, refutar, e dizer sem receio: \"não acho que fosse essa a ideia do autor ao escrever aquilo\"... Os professores ficavam indignados, mas reparei muitas vezes num certo silêncio de insegurança, apesar de logo depois desse silêncio vir um \"Não, estás enganado. A interpretação é a que eu acabei de referir\". Eu acabava por ponderar as opiniões diferentes que iam surgindo, e nenhuma me parecia fora de contexto... Eu própria pensava, por vezes, coisas totalmente diferentes das interpretações que nos eram impostas. Provav!
elmente, alguns professores de Português reuniram-se um dia, e decretaram um número restricto de ideias válidas para a interpretação das obras leccionadas no nosso programa... Não deixa de ser redutor. Um poema, um texto, uma história, uma moral, são, para começar, produções intelectuais muito próprias, com um traço profundamente vincado do seu autor. Quando chegam aos olhos, ouvidos e todos os demais sentidos (até emocionais!) de terceiros, a dimensão da pluralidade de interpretações torna-se praticamente exponencial... Para quê limitarmos a imaginação, o sentimento, as emoções que a leitura nos proporciona? Qualquer tipo de arte tem um sentido tão pessoal quanto complexo, e é uma das experiências mais parecidas com algo divino que podemos aproveitar nesta Terra tão mundana... Se não nos soltarmos na nossa própria liberdade, não aproveitamos a plenitude das palavras...
PS: Com os textos que escreves, nunca me ocorreria pensar que não foste muito boa aluna a portugês;)
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